21 fevereiro 2007

Exclusividade da competência dos julgados de paz

Por Nuno Lemos Jorge

Actualizo este texto, anteriormente publicado no blog e na sequência de muitos outros, pela inclusão de mais uma decisão: o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8759/2006-8, no sentido da não exclusividade da competência dos julgados de paz. A decisão engrossa o rol infra descrito.

Foi publicado um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre o problema da exclusividade da competência dos julgados de paz, no qual se entendeu que a competência em causa não é exclusiva. Sendo uma das ainda poucas tomadas de posição do Supremo (cfr. a lista actualizada infra), transcreverei o essencial da sua fundamentação.

O acórdão em causa é de 23-01-2007, proferido no processo n.º 06A4032, por unanimidade, e retira alguma força à afirmação do meu último post sobre a matéria, onde indiquei que a corrente da exclusividade ganhava terreno. Por outro lado, continua acesa - eu diria mesmo incandescente - a discussão.

Antes disso, porém, quero indicar que me dei conta, ao ler o acórdão, da existência de um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre este problema (parecer este que eu ainda não tinha lido), que também se pronuncia pela concorrência de competência entre tribunais judiciais e julgados de paz.

Trata-se do parecer n.º 10/2005, de 17 de Agosto de 2005, disponível online aqui e no DR, II Série, n.º 169, de 2 de Setembro de 2005, pp. 12840 e ss.
Note-se que "por despacho de 10 de Maio de 2005, o Procurador-Geral da República determinou que a doutrina deste parecer seja seguida e sustentada pelos magistrados do Ministério Público (artigos 12.o, n.o 2, alínea b), e 42.o, n.o 1, do Estatuto do Ministério Público)".

Eis, então, o essencial da fundamentação do acórdão de 23-01-2007, proferido no processo n.º 06A4032. No final desta transcrição, encontra-se a lista actualizada de jurisprudência sobre esta matéria. Tal lista vai agora, também, aumentada com outras decisões referidas no acórdão citado.

"A questão de saber se a competência material dos julgados de paz é optativa, ou exclusiva, relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial concorrente, não tem sido pacífica, podendo mesmo dizer-se que se trata de mais uma vexata quaestio, na doutrina e na jurisprudência.

Assim, o Conselheiro Cardona Ferreira, Presidente do Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz, considera o artº 9º e a competência material que estabelece, como fundamental, dado que tipifica, em exclusividade, a competência material desses tribunais (Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pág. 29).

Sustenta o mesmo Autor, em termos mais claros (Julgados de Paz – Cidadania e Justiça – Do passado, pelo presente, para o futuro, no Boletim da Ordem dos Advogados, nº 23, Novembro-Dezembro, págs. 42-46), que a competência dos julgados de paz não é optativa, mas, sim, vinculativa, ou seja, onde houver julgados de paz e na medida das suas competências, as respectivas acções devem ser propostas nos julgados de paz e não nos tribunais comuns.

Por seu turno, Joel Timóteo Ramos Pereira e João Miguel Galhardo Coelho, citados no ac. do STJ, de 5.7.2005 (na CJSTJ 2005, II, 154) são também da opinião de que a competência material fixada no referido artº 9º é exclusiva aquando da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos julgados de paz, uma vez que a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração no julgado de paz ou no tribunal judicial, ocorrendo violação dos artºs 211º da Constituição e 66º do CPC se a demanda for instaurada no tribunal judicial das 1ª instância.

Na mesma linha, expendeu-se no aresto deste STJ, de 4.3.2004, processo 03B3646, em www.dgs.pt, que a partir da sua instalação nas freguesias por eles abrangidas, os julgados de paz são exclusivamente competentes para apreciar e decidir as acções declarativas resultantes de direitos e deveres dos condóminos, sempre que a respectiva assembleia não tenha deliberado sobre a obrigatoriedade de compromisso arbitral, para resolução dos conflitos entre condóminos ou entre eles e o administrador, desde que as questões não excedam a alçada do tribunal de 1ª instância.

Também no acórdão o STJ, de 3.10.2006, tirado no agravo nº 2.396/06, se decidiu no mesmo sentido.
Ainda na mesma senda, o acórdão da Relação do Porto, de 27.6.2006, processo 0623377, no sítio www.dgsi.pt.

Em sentido contrário, porém, isto é, de que no actual quadro jurídico a competência material dos julgados de paz é optativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial concorrente, pronunciaram-se o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, de 21.4.2005 (PGRP00002598, em www.dgsi.pt) e o acórdão da Relação de Lisboa, de 18.5.2006, na CJ 2006, III, 99.
Sem querer de modo algum menosprezar a argumentação que suporta a primeira apontada tese, optamos por julgar a competência material em referência como meramente facultativa, paralela à dos juízos de pequena instância, nas matérias indicadas no artº 9º da Lei nº 78/2001.

Admitimos que criação dos julgados de paz tenha sido uma medida tendente a lograr o descongestionamento dos tribunais judiciais relativamente a algumas matérias, e a criar uma forma de rápida solução de questões que são prima facie simples, com recurso à mediação e participação cívica dos interessados.

O escopo do descongestionamento seria melhor atingido se a competência atribuída fosse exclusiva, o que mais eficazmente minimizaria o desequilíbrio entre a demanda da tutela do judiciário e a capacidade de resposta do sistema jurisdicional.
Com a competência material exclusiva dos julgados de paz melhor se libertariam os tribunais judiciais das “questões menores”, proporcionando-se também aos cidadãos uma justiça mais célere, mais próxima e menos onerosa.

Todavia, ao invés do que acontecia em anteriores projectos, a Lei nº 78/2001 não diz no artº 9º (nem em qualquer outro lugar) que a competência é exclusiva, sinal de que o legislador quis, a final, postergar a atribuição de competência imperativa aos julgados de paz.

Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa (artigo 209º nº2) coloca os julgados de paz ao nível dos tribunais arbitrais, arredando-os da categoria dos tribunais judiciais, prevendo a possibilidade de formas de composição não jurisdicional de conflitos no artº 202º, nº 4.

Os julgados de paz consubstanciam uma estrutura paralela, necessariamente menor, com vocação para, com mais celeridade, buscar a mediação e a conciliação, em processo menos formal.

O Decreto-Lei nº 539/79, de 31 de Dezembro (que não chegou a ser ratificado – e portanto a produzir efeitos – “ex vi” Resolução da Assembleia da República nº 117/80, de 31 de Maio), que antecedeu a nova legislação, consagrava, em matéria cível, uma competência alternativa, visto resultar da aceitação das partes.

A Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, que aprovou a organização e funcionamento dos julgados de paz – na sequência da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, que introduziu no artº 209º, nº 2 da Constituição da República a possibilidade da criação daqueles julgados – não tem qualquer norma a consagrar a competência exclusiva da nova estrutura, que surge desenhada como um meio alternativo de equidade, vocacionado para permitir “a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes.” (artigo 2º nº1).

Como se refere no citado Parecer da PGR, de 21 de Abril de 2005 (DR, II, de 2 de Setembro de 2005 e no sítio www.dgsi.pt), “no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz é optativa, relativamente aos tribunais judiciais, com competência territorial concorrente”, sendo que a “questão da competência exclusiva nunca foi erigida em elemento nuclear da nova organização, não foi especificamente discutida, nem se adoptaram alterações ao Código de Processo Civil ou à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que possam ser tidas como contributo interpretativo.
Também o texto final adoptado, que se afastou, sem justificação, do regime de competência exclusivo e residual que constava do projecto, não fornece qualquer apoio hermenêutico sobre a intenção legislativa.”

Ademais, na sua declaração de voto (in “Diário da Assembleia da Republica”, I, 89, de 1/6/2001, p. 3510) um deputado chamou a atenção para “este modo de realização da justiça” (…) que “apela mais à responsabilidade das partes do que propriamente ao poder soberano que o Estado tem para decidir as causas”, e que “competirá às partes dizer se querem rapidamente pôr termo ao litigio ou se querem arrastá-lo através das formas tradicionais da justiça dos tribunais”, e nada foi então dito em sentido contrário a esta declaração (o negrito e os sublinhados são da nossa lavra).

A possibilidade de transferência do processo dos julgados de paz para os tribunais judiciais (nas situações dos artigos 41º e 59º nº3 da Lei nº 78/2001) mais convence da não consagração da competência exclusiva, já que não há, ao invés do que defendem certos autores, competências “semi-exclusivas”, com cisão das regras de competência material de acordo com o percurso processual.
A competência ou é exclusiva ou meramente optativa, como aqui se afigura ser, não havendo um tertium genus.

E como bem se salienta no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, não faz sentido que os tribunais judiciais adquiram competência apenas quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos julgados de paz ou quando seja requerida prova pericial.

Seria absurdo – salvo o devido respeito pela opinião contrária – começar por considerar o tribunal judicial incompetente em razão da matéria, para o passar a considerar competente a partir do momento em que fosse enxertado no processo do julgado de paz um incidente processual ou fosse requerida a prova pericial, ou o valor processual passasse a exceder a alçada do tribunal judicial de 1ª instância.

Nem – como se expende ainda no Parecer da PGR – favorece a tese da exclusividade a regra do artº 66º do Código de Processo Civil, uma vez que a aplicação dessa norma deriva da falta de uma norma atributiva de competência a outro tribunal, sendo que no caso vertente, pelo contrário, o que se discute é a existência de uma norma atributiva de competência a um tribunal judicial e outra atributiva de competência aos julgados de paz (que – note-se uma vez mais – não pertencem à estrutura jurisdicional a que aqueloutro pertence).

De resto, sempre seria no mínimo duvidosa a conformidade constitucional da interpretação perfilhada pela tese oposta, por conduzir à limitação de acesso aos tribunais judiciais – os verdadeiros tribunais paradigma de órgão de soberania – e não poder o recurso a estruturas extrajudiciais precludir, perimir ou prejudicar a possibilidade de recurso à via jurisdicional.

Diga-se ainda que a fraquíssima cobertura territorial dos julgados de paz, volvidos já cinco anos (apenas 16 julgados de paz instalados, quatro dos quais, segundo se noticiou, a funcionar menos bem…), vai também no sentido de esta forma de justiça alternativa se encontrar numa fase experimental (como de resto deflui dos artºs 64º a 66º da Lei nº 78/2001).

E a avaliar pelo teor de artigos publicados em órgãos de comunicação social escrita neste último fim-de-semana (Jornal de Notícias de 19.1.2007 e Diário do Minho de 19.1.2007 ou 20.1.2007) ressumbra com alguma clareza estar fora dos intuitos do Governo alterar a legislação existente por forma a que os cidadãos fiquem obrigados a recorrer aos julgados de paz nas matérias em que estes são materialmente competentes, desenhando-se tão-só no horizonte vislumbrado pelo Executivo a criação de uma rede de tribunais não judiciais como solução alternativa de resolução de certos conflitos, no convencimento de que, mesmo sem mexer na Lei nº 78/2001, de 13/7, virá no futuro a crescer exponencialmente o número de processos julgados naqueles tribunais extrajudiciais.

Tribunais extrajudiciais – diga-se também – onde o Ministério Público não representa o Estado, já que naquela Lei se não encontra qualquer referência a tal representação, o que só por si igualmente inculca que a opção pela tese da alternatividade da competência é a mais consentânea, e desaconselha o sufrágio da tese da exclusividade."


Pela exclusividade da competência dos julgados de paz, nas matérias que lhe são confiadas, e consequente incompetência dos tribunais judiciais alinham os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04-03-2004, proferido no processo n.º 03B3646 (neste acórdão, não se trata da questão principal, mas é tratada na parte final da fundamentação), de 05-07-2005, in CJ, 2005, II, pág. 154, de 03-10-2006, proferido no processo de agravo n.º 2396/06 (não publicado na íntegra, mas com sumário aqui), do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2006, proferido no processo n.º 0623377 (por unanimidade), de 08-11-2005, proferido no processo n.º 0525540(por unanimidade) e de de 05-12-2006, proferido no processo n.º 0626174 (por unanimidade), do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-10-2006, proferido no processo n.º 8573/2006-8 (com um voto de vencido), de 29-06-2006, proferido no processo n.º 5726-2006-6 (com um voto de vencido que, porém, não abrange a referida questão), de 22-06-2006, proferido no processo n.º 4929/2006-6 (por unanimidade) e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8989/2006-2 (por unanimidade).

Contra a exclusividade, defendendo a competência alternativa entre tribunais judiciais e julgados de paz nas matérias confiadas a estes, podem ler-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2007, proferido no processo n.º 06A4032 (por unanimidade), do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2006, proferido no processo n.º 3554/2006-7 (por unanimidade), seguindo e citando o acórdão do mesmo tribunal de 18-05-2006, proferido no processo n.º 3896/2006-8 (por unanimidade) e ainda, da mesma Relação, os de 14-11-2006, proferido no processo n.º 8588/2006-7 (com um voto de vencido) e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8759/2006-8 (por unanimidade).

Defendendo a concorrência de competência, transitoriamente, pode ler-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-09-2006, proferido no processo n.º 4664/2006-8.

As opiniões mais citadas a favor da exclusividade são do Conselheiro Cardona Ferreira ("Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento") e do Dr. Joel Timóteo Ramos Pereira ("Julgados de Paz, Organização, Trâmites e Formulários").


Fonte: "processo-civil.blogspot.com"

O Autor, a quem agradeço a permissão da reprodução deste artigo, é docente de Direito Processual Civil da Universidade Lusófona do Porto

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